Barroso e Coelho Advocacia

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O Direito Penal e a “rachadinha”

Em síntese, a prática denominada “rachadinha” consiste no acordo para repasse de parte da remuneração de um servidor público a políticos ou assessores.

Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro

No ano de 2019, a referida prática ganhou destaque, principalmente por conta das investigações contra o Senador Flávio Bolsonaro, suspeito de organizar um esquema de “rachadinha” em seu gabinete parlamentar na Assembleia Legislativa do RJ[1].

Embora a prática só tenha ganhado repercussão midiática recentemente, é bastante comum nos vários âmbitos da administração pública em todos os poderes: executivo, legislativo e judiciário.

A operacionalização do repasse varia conforme as circunstâncias concretas. Pode ocorrer através de pagamento direto, troca de títulos, repasse de empréstimos ou qualquer forma que atenda às intenções dos pactuantes. Seja qual for, a principal consequência da "rachadinha" é disponibilizar maiores recursos financeiros ao agente político.

A operacionalização do repasse varia conforme as circunstâncias concretas.

Não significa, contudo, que o recurso vá necessariamente ser usado em proveito próprio. Aliás, a destinação das quantias que advierem desse acordo pode determinar a licitude ou não do repasse. Surge então a celeuma entre doutrina e jurisprudência sobre o enquadramento da conduta enquanto crime.

Alguns juristas entendem ser possível a configuração dos crimes de peculato, corrupção passiva, concussão ou emprego irregular de verbas públicas, outros entendem haver apenas improbidade administrativa, não se tratando de conduta criminosa, e, por fim, há aqueles que entendem não haver qualquer ato ilícito.

Explicaremos como a conduta pode ser tratada pelo direito penal.

Grande parte da jurisprudência entende que a prática da “rachadinha” configura o crime de peculato[2] em sua modalidade desvio. Para sua ocorrência, é necessário que um funcionário público[3] desvie o dinheiro de que tem posse em razão do cargo em proveito próprio ou alheio.

Contudo, entendemos ser inadequada a capitulação da conduta como crime de peculato, exceto nas situações em que há “funcionário fantasma”[4], por duas razões:

1 – O crime de peculato em sua modalidade apropriação ou desvio exigem que o agente tenha a posse do bem em virtude de seu cargo. O funcionário público que recebe o repasse não tem a posse do salário dos servidores em razão do cargo, justamente pelo pagamento de salário ser relação direta entre a administração pública e o servidor, sem intermediação;

2 – A partir do momento em que o servidor público que efetua os repasses recebe o seu salário, o patrimônio não mais pertence à administração pública e nem está sob guarda do funcionário público que solicita ou exige o repasse.

As outras possibilidades mais aceitas atualmente são a configuração dos crimes de corrupção passiva[5] ou concussão[6].

 Os crimes se diferem pelo verbo: na concussão, o agente deve exigir, ou seja, impor, ordenar, determinar; enquanto na corrupção passiva há uma solicitação, um pedido.

Sobre a possível configuração destes crimes, é importante termos em mente que o salário é um bem jurídico disponível. Dele pode ser feito o que bem aprouver o possuidor, podendo ser doado sem que isso configure qualquer ato ilícito.

Assim, quando o salário passa a compor o patrimônio do servidor, perde o caráter de verba pública, tornando-se privado. A partir daí, o negócio jurídico que tenha objeto lícito e não contenha vício de vontade é permitido pelo direito.

Nos casos em que o agente utiliza os repasses para acréscimo patrimonial e enriquecimento, é possível, a depender das peculiaridades do caso concreto, a configuração de crime, mas em razão da coação do sujeito passivo, e não pela natureza da verba.

Quando o repasse é exigido como condição para a manutenção do cargo ou outra espécie de imposição, que retire o caráter de espontaneidade da doação, fica caracterizado o vício na vontade do agente, o que indicaria a ilicitude da conduta.

Nestas circunstâncias, comprovada a destinação ilícita dos repasses exigidos e o vício na vontade do servidor que efetua o repasse, o agente público incorre no crime de concussão, cuja sanção prevista pelo Código Penal brasileiro é de 2 (dois) a 8 (oito) anos.

Antes de adentrarmos na possibilidade ou não da configuração de um desses crimes, é preciso uma breve digressão para delinear as possíveis intenções do agente que recebe o repasse de salários.

O Brasil possui 5.570 municípios. Apenas o estado de Minas Gerais possui 853[7]. Dentre estes municípios, grande parte possui uma deficiência orçamentária e de recursos bastante dramática, o que afeta de forma determinante o serviço público nestes locais.

Em muitos casos, especialmente nos municípios localizados em comarcas do interior, o déficit é tão grande que se torna um empecilho para a realização das atividades comuns de um gabinete, havendo escassez quanto a insumos básicos e, principalmente, mão-de-obra.

Muitas vezes a “rachadinha” ocorre, mas o agente não tem a finalidade de receber o salário e incrementar seu patrimônio, e sim reverter esse valor para o aprimoramento das atividades da própria repartição pública ou para a contratação de mais servidores.

Nestes casos, entendemos ser impossível a configuração da conduta enquanto crime, especialmente de corrupção passiva ou concussão, pois não há o dolo específico (vontade) do agente em obter a vantagem “para si ou para outrem”. A vantagem, além de não ser indevida, é obtida em prol da própria administração pública.

É consolidada a jurisprudência[8] nos Tribunais Superiores de que a aplicação irregular de verbas públicas, mantida a satisfação do interesse público, configura mera irregularidade administrativa.

Conclui-se que a prática da “rachadinha” possui contornos jurídicos controversos e sua configuração como crime ou não depende de uma análise minuciosa dos fatos e da intenção do agente que pratica a conduta.

    

[1] Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50842595. Acesso em 20 de dezembro de 2019.

[2] Peculato

 

        Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:

 

        Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.

 

        § 1º - Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário.

[3] Para o direito penal funcionário público é quem exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, cargo, emprego ou função pública.

[4] Nos casos em que há apropriação de salários a um funcionário fictício, que não existe na realidade,  é possível a configuração do crime de peculato.

[5] Corrupção passiva

 

        Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:

 

        Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 10.763, de 12.11.2003)

 

        § 1º - A pena é aumentada de um terço, se, em conseqüência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.

 

        § 2º - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem:

 

        Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.´

[6] Concussão

 

        Art. 316 - Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida:

 

        Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa.

[7] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_estados_brasileiros_por_n%C3%BAmero_de_munic%C3%ADpios. Acesso em 20 de dezembro de 2019.

[8] PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. ART. 312, CAPUT, DO CP. DOLO ESPECÍFICO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. RECURSO IMPROVIDO. 1. No delito de peculato-desvio, previsto no art. 312, caput, segunda figura do Código Penal, o dolo é representado pela consciência e vontade de empregar a coisa para fim diverso daquele determinado, aliado ao elementos subjetivo do injusto, consistente no especial fim de agir, que é a obtenção do proveito próprio ou alheio. 2. A aplicação incorreta de verba pública, sem alteração de seu fim (interesse público), constitui hipótese de irregularidade administrativa, não da conduta criminosa de peculato. 3. Recurso improvido.” (STJ, REsp. 1257003/RJ, Rel. Ministro Rogério Schietti Cruz, Rel. p/ Acórdão Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, j. 20/11/2014, DJe 12/12/2014)