Habeas Corpus preventivo e o plantio autorizado de cannabis para fins medicinais

A cannabis para fins medicinais trouxe uma significativa mudança de paradigma no tratamento de determinadas doenças, de modo que a sua regulamentação no Brasil tem sido objeto de debate constante, tanto no Congresso Nacional como no Judiciário.

O cenário político para a regulamentação do cultivo da cannabis medicinal é incerto; todavia, ainda há uma possibilidade de autorização para aqueles que possuem doença tratável com seus derivados, por meio do Habeas Corpus preventivo.

O Habeas Corpus é considerado um remédio constitucional, que visa garantir a liberdade do indivíduo, quando este for preso ilegalmente ou tiver sua liberdade de ir e vir ameaçada por abuso de poder ou ato ilegal. Está previsto no artigo 5º, caput, inciso LXVIII da Constituição Federal, sendo cabível em duas hipóteses:

  • Habeas Corpus repressivo: utilizado quando já se verificou a violação ao direito de locomoção, nas situações em que se objetiva a restituição da liberdade de pessoa presa ilegalmente.

  • Habeas Corpus preventivo: utilizado quando há ameaça ao direito de locomoção, isto é, na hipótese em que o indivíduo sentir que a sua liberdade de ir e vir está ameaçada injustamente, a fim de evitar que a coação ilegal da liberdade aconteça. 

Habeas Corpus preventivo e o plantio autorizado de cannabis para fins medicinais

É nesse contexto que o Habeas Corpus preventivo se torna a medida adequada para pleitear, perante o judiciário, ordem autorizativa para o plantio de cannabis medicinal, evitando-se qualquer ameaça da restrição ilegal de sua liberdade de locomoção em decorrência desta prática.

Em primeiro lugar, torna-se importante compreender que a atual Lei de Drogas veda o cultivo e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser produzidas drogas, ressalvada a possibilidade de autorização legal. O parágrafo único prevê ainda que pode a união autorizar o plantio, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização:

Artigo 2º  Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso.

Parágrafo único. Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas.

Neste diapasão, o remédio constitucional preventivo, previsto no artigo 660, §4º, do Código de Processo Penal, visa a obtenção de salvo conduto para plantio de cannabis, sem que na contramão, a liberdade daquele cidadão esteja ameaçada.

Sendo assim, para que o paciente tenha direito ao autocultivo é necessário recorrer ao Poder Judiciário afim de obter um “salvo conduto”, através de um Habeas Corpus preventivo.

O pedido de autorização, por sua vez, tem como exigência receita médica para o tratamento à base de cannabis, laudo médico demonstrando a importância do tratamento para a saúde do paciente e autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Além disso, é importante demonstrar que o custo do medicamento tradicional é financeiramente inviável à manutenção o tratamento, bem como certificação que demonstre a capacidade do paciente para o manejo e plantio da substância.

Foi com esteio nesse debate que no último dia 04, o Excelentíssimo Ministro Sebastião Reis Jr., do Superior Tribunal de Justiça, autorizou paciente com prescrição odontológica a cultivar cannabis medicinal para o seu tratamento.  No Habeas Corpus em questão, a defesa trouxe relatório odontológico indicando que o paciente possui transtornos de articulação temporomandibular e histórico de ansiedade, recomendando-se o uso terapêutico de canabinoides em razão da ineficiência dos tratamentos experimentados com medicação tradicional.

 Adentrando ao mérito, o Ministro ressaltou que a 6ª turma já decidiu que a conduta de plantar maconha para fins medicinais é atípica, ante a ausência de regulamentação prevista no art. 2º, parágrafo único, da lei 11.343/06:

Nos casos, prevaleceu o entendimento de que o cultivo de planta psicotrópica para extração de princípio ativo é conduta típica apenas se desconsiderada a motivação e a finalidade. A norma penal incriminadora mira o uso recreativo, a destinação para terceiros e o lucro, visto que, nesse caso, coloca-se em risco a saúde pública. A relação de tipicidade não vai se estabelecer na conduta de cultivar planta psicotrópica para extração de óleo para uso próprio medicinal, visto que a finalidade, aqui, é a realização do direito à saúde, conforme prescrito pela Medicina.[1]

Assim sendo, concedeu a ordem para expedir salvo-conduto, a fim de impedir que qualquer órgão de persecução penal turbe ou embarace o cultivo de 15 mudas de cannabis sativa a cada três meses, totalizando 60 por ano, para uso exclusivo próprio, enquanto durar o tratamento, nos termos da autorização odontológica.

 

[1] Trecho do voto proferido pelo Exmo. Min. Sebastião Reis Jr. no julgamento do HC 810.778- SC, em 27/04/2023.