Prisão em Segunda Instância e Presunção de inocência
/No dia 17 de Outubro de 2019, o Supremo Tribunal Federal iniciou os julgamentos das ADCs - Ações Declaratórias de Constitucionalidade números 43, 44 e 54, com a leitura do Relatório pelo Ministro Marco Aurélio e sustentação oral de alguns juristas, amicus curiae da causa.
Nestas ações, os autores, dentre eles a Ordem dos Advogados do Brasil, pedem que o Tribunal se posicione quanto a possibilidade de cumprimento de pena após o esgotamento da segunda instância por meio da declaração de constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal. Para elucidação do tema, mostra-se necessário que um breve histórico seja construído.
Por expressa previsão constitucional, artigo 5º inciso LVII da Constituição da República, ninguém poderá ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Além de disposto na Constituição da República, também no Código de Processo Penal encontra-se como condição para prisão do cidadão, afastadas as situações excepcionais relativas às prisões provisórias, o trânsito em julgado de sentença condenatória proferida em desfavor do réu.
Ocorre que, apesar da literalidade da norma constitucional e de norma infralegal, o Supremo Tribunal Federal mantinha o entendimento de que tais previsões normativas traziam um sentimento de impunidade popular. Assim, autoriza há mais de dez anos que aqueles que forem condenados em segunda instância iniciem a execução de suas penas.
Ao julgar Habeas Corpus de nº 152.752 em Abril de 2018, impetrado em favor do ex presidente Lula, o STF mais uma vez ratificou seu posicionamento, permitindo a execução da pena a partir da condenação em segunda instância, razão pela qual Luís Inácio Lula da Silva hoje encontra-se preso.
Quando do julgamento do Habeas Corpus, alguns dos votos proferidos pelos Ministros, como o de Luís Roberto Barroso, voltaram a trazer a questão da impunidade como óbice ao princípio da presunção de inocência.
Então, neste momento, o Supremo Tribunal Federal retoma a apreciação deste importante debate. O Ministro Marco Aurélio, relator das três ações, proferirá o voto condutor em 23 de Outubro de 2019. Os demais julgadores irão se manifestar posteriormente.
Apesar de se tratar de um problema de alta complexidade em algumas esferas (como a social e a política), sob a ótica do Direito trata-se de uma análise simples e direta: cumprimento do disposto na norma constitucional.
Não existe espaço para interpretações diversas ou exercícios hermenêuticos. A regra prevista em nossa Constituição e também no Código de Processo Penal é claríssima: para que seja iniciada a execução de pena de um cidadão, é necessário que este seja condenado por decisão transitada em julgado, ou seja, decisão não passível de revisão por instâncias superiores.
Questões relativas à impunidade, que se fundamentam na delonga para julgamento dos recursos e consequente declaração de prescrição da pretensão punitiva estatal, não estão na esfera de análise constitucional.
É um cenário simples: a Constituição da República confere ao cidadão a prerrogativa de recorrer de uma sentença condenatória até os Tribunais Superiores, e desvirtuar tal prerrogativa constitucional por absoluta ineficiência do Estado em prestação de jurisdição significa trazer um ônus ao réu, que não o deveria suportar.
Espera-se que os Ministros ao julgarem as Ações Diretas de Constitucionalidade mantenham a discussão em um plano jurídico-constitucional, não revolvendo questões de análise puramente sociológica, como a da “sensação de impunidade causada no povo”. Trazer elementos como este para o debate, além de empobrecer a própria discussão, contaminam o próprio julgamento.
A falácia de que não se pode aguardar o julgamento de recursos às instâncias superiores para punir, sequer pode ser considerada. Existe previsão para prender aquele réu que, por razões legais concretas, deva ser mantido recolhido durante o desenrolar do processo, conforme artigo 312 do Código de Processo Penal.
Vários canais de comunicação já começaram a estabelecer previsões relativas ao julgamento, qual Ministro se posicionará de qual maneira e como será finalizado o placar. São quase cinco mil presos que serão afetados diretamente pelo resultado deste julgamento, réus hoje que se encontram em cumprimento de pena mesmo na ausência de trânsito em julgado de suas condenações – dentre eles o ex-presidente Lula.
Aguardamos do Supremo Tribunal Federal um julgamento racional, que se mantenha no nível do Direito, atinente à Constituição pela qual a Corte tem dever de zelar, isenta de partidarismo ou influências políticas.
Ao fim, espera-se que quem saia vitorioso não seja o ex-presidente ou os milhares de réus presos – que devem, sim, exercer sua prerrogativa de recorrer em liberdade – mas sim o próprio Estado Democrático de Direito, que se verá resguardado por meio do cumprimento de uma de suas normas edificadoras.