Invasão de domicílio e violência policial

João retornava para sua casa quando recebe, de uma viatura policial, o sinal para encostar seu veículo.

Sem saber se o álcool que havia consumido na festa do dia anterior, poderia fazê-lo ser enquadrado no crime de embriaguez ao volante, resolve empreender fuga.

Sem muito esforço, já que o trânsito bloqueava a passagem da viatura, João faz algumas conversões perigosas e logo chega em casa, despistando os policiais.

Após algumas horas, João é surpreendido com a invasão de sua residência. Lá os agentes encontram certa quantidade de droga ilícita. Levam-no sob custódia e um Auto de Prisão em Flagrante é lavrado. Houve excesso da polícia?

Em um momento de agitações sociais relacionadas a abusos de policiais, é oportuno explicar o que há de certo ou errado em uma das situações que mais se identificam abusos policiais, quando trazidas ao Advogado Criminal: a invasão de domicílio.

Um breve esclarecimento sobre violência policial

O exercício de toda profissão está sujeito a abusos e exageros. Algumas carreiras, como a policial, trazem consequências mais graves. No caso, isso ocorre porque a polícia tem uma legitimação extraordinária para o emprego da força. Quando essa força é utilizada fora do que é autorizado pela lei, temos a violência.

Isso não quer dizer que todo episódio de violência seja intencional. Nem que todo policial cometa abusos: sabemos que é a exceção. E também não significa que, nas situações em que ocorrem, a violência seja sempre clara, explícita ou facilmente identificável.

Por isso, para a demonstração que pretendemos, vamos imaginar o pior dos contextos e limitaremos as possibilidades de legitimação do uso da força policial. Queremos falar unicamente da situação hipotética em que há um excesso ilegal dessa força, em relação ao domicílio do indivíduo.

E como último esclarecimento, é importante explicar que uma mesma situação de abuso pode comportar uma série de ilegalidades ou violações. Tudo depende do enfoque. No caso do nosso João, poderíamos identificar ilegalidade no procedimento de Prisão em Flagrante. Poderíamos também questionar o crime imputado a ele, ou ainda poderíamos discutir a natureza ou quantidade do material apreendido. Mas tudo isso seria trabalho para o Advogado Criminal que o João contratasse para o caso.

Para nossa proposta aqui, vamos mirar apenas no problema da invasão domiciliar pelos agentes policiais.

A inviolabilidade do domicílio

A Constituição Federal garante um Direito que chamamos de inviolabilidade de domicílio. INviolabilidade, porque o domicílio da pessoa não pode ser violado. E violação, no caso, significa adentrar sem ser autorizado pelo seu proprietário.

Ninguém pode entrar no domicílio de uma pessoa, sem ser autorizado por ela. Pronto! Esta é a regra do art. 5º, inciso XI, da Constituição. Ela é feita pra proteger a intimidade, o sentimento de segurança pessoal e um monte de outros valores que nosso sistema jurídico considera importantes.

Mas quem confecciona nossas leis também achou que existem algumas situações em que autorizar alguém a “entrar sem ser convidado” serve pra proteger valores ainda mais importantes, se pesados na balança.

As exceções à inviolabilidade do domicílio

Então a Constituição trouxe quatro casos em que uma pessoa pode violar o domicílio de outra:

  • Para prestar socorro;

  • Ocorrendo um desastre;

  • Por determinação judicial; ou

  • Em caso flagrante delito.

Não é preciso ser Advogado Criminal, ou sequer formado em Direito, para imaginar que uma pessoa mal intencionada pode tentar adaptar um número enorme de narrativas a essas quatro situações.

Quando essa pessoa é um agente policial, o mais comum é adaptar a entrada não autorizada à situação de flagrante delito. Afinal, entender os significados e limites do flagrante é um dos grandes desafios de quem lida com Direito Criminal.

É nesse contexto que o policial costuma enquadrar a pessoa que ele persegue até em casa. Como o João, que mencionamos lá no início.           

Também nessa hipótese é que entram os delitos em que há uma dificuldade em determinar o momento do flagrante. Neste ponto, precisaremos de uma explicação mais técnica.

Em alguns crimes é fácil dizer o momento da consumação. O homicídio, por exemplo, é consumado no momento em que a vítima morre. Mas quando é consumado o crime daquele indivíduo que esconde uma arma ilegal em sua casa?

Esse crime não acontece em um momento isolado. É mais como se a consumação dele ocorresse o “tempo todo”, ou como dizemos, fosse “permanente”! Dura enquanto durar aquela situação. No caso, enquanto a pessoa mantiver a arma ilegal.

Então, fica fácil justificar a violação na casa de um indivíduo em que ocorre um crime permanente. O flagrante, segundo esta lógica, poderia estar acontecendo em qualquer instante.

Essa “brecha” é particularmente preocupante em um país onde o crime mais difundido é um desses crimes permanentes: o tráfico de drogas.

Mais ainda, pelo fato dele ser majoritariamente praticado, perseguido e punido, no estrato social mais sensível da população. Justamente o mais sujeito à impunidade dos excessos porventura cometidos pelos agentes públicos. Nesse sentido, a pobreza é sempre um obstáculo imenso na busca da justiça e visibilidade.

O STJ entra em cena

Foi por observar a recorrência de violações domiciliares de policiais, que “sabiam” ou por sorte “descobriam” que o indivíduo usava o domicílio para traficar drogas que o Superior Tribunal de Justiça resolveu analisar melhor essa forma de aplicar à exceção de inviolabilidade.

Decidiu então, em 15 de maio de 2020, que a existência de denúncia anônima da prática de tráfico de drogas não autoriza o ingresso policial no domicílio do indivíduo. Ainda que ele tenha sido perseguido até o local.

Temos aí um precedente importante para inúmeras situações de abuso policial – como no caso em que o agente adentra injustificadamente a residência do indivíduo, querendo prendê-lo. Usa, então, o “encontro” – e aqui é possível pensarmos até na “implantação” – das provas de um crime permanente, para regularizar a invasão e justificar a prisão da pessoa. É, inclusive, o caso de nosso amigo João.

O precedente do STJ pode ser utilizado pelo Advogado Crimina, para demonstrar que a prisão foi ilícita, invalidar as provas colhidas e ainda responsabilizar o agente público abusivo.

Em um tempo de medo de excessos por parte do Estado e de seus representantes, são tranquilizadoras as decisões que prezam pelos direitos individuais.

Mas ainda há espaços para abusos

A briga contra os excessos na utilização dos instrumentos de força empregados pelos agentes públicos é constante. Tanto a lei, quanto as situações concretas, devem ser sempre observadas com um olhar crítico. Não devem abrir espaço para que atos de violência sejam autorizados por uma norma mal interpretada ou uma narrativa distorcida.

Voltando ao exemplo do João, a violação ao seu domicílio poderia ter sido justificada, por exemplo, por uma autorização de entrada concedida, pela sua esposa, aos policiais. Certamente: se a entrada foi permitida, não há violação.

Mas quando o Boletim de Ocorrência chega às mãos do juiz, ele não relata que essa autorização foi conseguida porque os policiais apontaram uma arma para a esposa do João. É extremamente difícil provar excessos como estes. Quando raramente são testemunhados (uma das poucas espécie de provas possíveis), são ignorados por pessoas que não querem se envolver. Há um medo de represálias.

Mas se a indignação fosse maior que o medo, as situações de abuso seriam melhor reportadas. As chances de responsabilização pelos excessos seriam maiores.

Incentivar essa forma singela de combate é uma das muitas maneiras de afastar os excessos cometidos pelos agentes públicos. E ela não depende exclusivamente do Advogado Criminal ou de qualquer operador do Direito.

Além disso, é evidente que alguns estratos sociais não são prejudicados por um modelo de atuação policial violenta. Não significa, contudo, que precisem ser signatários desse modelo.