Prefeito que paga salário a funcionário fantasma comete crime?

No início de junho de 2020, tivemos uma “notícia quente”: um prefeito não está cometendo crime ao pagar um funcionário fantasma.

O tema não interessa apenas ao Advogado Criminal. É também assunto de quem trabalha com Direito Eleitoral, Inelegibilidade, Ficha Limpa, Perda de Cargo Público e Perda de Mandato. Mas como é importante dar foco às nossas análises, vamos tratar apenas da questão criminal relacionada a ele.

Ou melhor dizendo, da questão não criminal do assunto: segundo informativo de 8 de junho, o STJ bateu o martelo – prefeito que paga funcionário fantasma não comete crime.

A notícia parece autoexplicativa. Mas é o raciocínio jurídico por trás da decisão que traz complexidade ao tema e faz esse julgado (AgRg no AREsp 1.162.086-SP) ser importante para várias áreas do Direito. Vamos entender.

Como o pagamento de um servidor entra na mira do Ministério Público

É muito comum – e aliás, muito mais comum do que deveria -  a investigação criminal e a denúncia de ocupantes de cargos eletivos.

Nesse momento de oferecimento de denúncia, o papel do Ministério Público é verificar se qualquer das irregularidades constatadas, durante a fase de investigação, se enquadram em algum ou alguns dos crimes da legislação brasileira.

E quando as investigações acontecem em nível municipal, é frequente a situação em que um funcionário – geralmente um parente do Prefeito ou Vereador – recebe como servidor, mas de fato não exerce qualquer atividade no órgão.

O Ministério Público, por vários anos, enquadrou essa conduta no art. 1º, inciso I, do Decreto-Lei nº 201/67. É o crime de apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los em proveito próprio ou alheio. Está no Decreto que trata da responsabilidade de Prefeitos e Vereadores.

O posicionamento do Superior Tribunal de Justiça 

Após inúmeras decisões divergentes, o STJ finalmente consolidou o entendimento de que este é um enquadramento indevido. O pagamento feito ao funcionário fantasma não é traduzido pelo crime do art. 1º, inciso I, do Decreto-Lei nº 201/67, ou por qualquer crime. É uma conduta que o Advogado Criminal chama de atípica, por não ser possível encaixá-la em nenhum dos crimes previstos na lei brasileira.

O raciocínio do Superior Tribunal é lógico e elegante: se a pessoa está registrada nos quadros do órgão público, ela deve ser remunerada. Se ela está ou não exercendo bem suas funções, ou se não está exercendo função nenhuma, o problema é outro. Seria o caso de responsabilizar civilmente ou administrativamente o agente político responsável pelo funcionário fantasma. Mas certamente não deve responder por aquele delito de apropriação de bens ou rendas públicas.

Quando paga um funcionário devidamente registrado, o Prefeito ou Vereador não faz nada senão o exercício de um dever legal: pagar o servidor. Por isso a conduta não pode ser compreendida como criminosa. 

O ponto de partida: um precedente semelhante

O entendimento do STJ buscou analogia nos posicionamentos assumidos em dois casos mais antigos:  HC 466.378/SE e REsp 1633248/SE.

Em ambos, ficou decidido que “o servidor público que se apropria dos salários que lhe foram pagos e não presta os serviços atinentes ao cargo que ocupa, não comete o crime de peculato”. O fundamento é o mesmo: paga-se o servidor em cumprimento à determinação legal. Se ele nunca sequer pisou na repartição onde deveria trabalhar, poderá ser condenado em uma ação própria e talvez tenha que indenizar o Estado.

Mas, independentemente de haver ou não irregularidades no exercício de suas atribuições, a situação jurídica formal – de servidor do órgão público –  deve gerar todas suas consequências regulares, até ser alterada. O recebimento dos salários é apenas uma delas e não pode ser compreendida como um ilícito penal.

Espaço aberto para entendimentos semelhantes

Assim como a nova posição do STJ pega um raciocínio jurídico anterior e o desenvolve para um contexto mais complexo, é de se esperar que o atual precedente seja utilizado para outras muitas e diversas situações.

Para todos aqueles que se encontram envolvidos em investigações relacionadas à cargos municipais, mandatos públicos, cassações de Prefeitos ou Vereadores, auditorias de contas públicas, ficha limpa; ou mesmo para aqueles que já tenham sofrido qualquer forma de condenação relacionada a esses assuntos, é o momento de procurar um Advogado Criminal bem informado.