A confissão na persecução penal

A confissão na persecução penal

Por muito tempo, a confissão foi concebida como a “rainha das provas” no processo penal, sendo a sua mera ocorrência no caso suficiente para levar à condenação do réu. Especialmente em regimes absolutistas, vigorou um sistema processual hierarquizado, de prova tarifada, em que se verificava a atribuição de diferentes valores às provas levadas à avaliação do julgador. Dessa forma, com a fixação prévia do valor de cada uma das provas, não havia qualquer flexibilidade reservada ao juiz para analisá-las conforme suas convicções e com o caso concreto.

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A Inconstitucionalidade da Requisição de Relatórios do COAF por Autoridades Policiais sem Autorização Judicial

Este artigo analisa a inconstitucionalidade da requisição de relatórios de inteligência financeira do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) por autoridades policiais sem prévia autorização judicial.

                               Explora-se, brevemente, a intersecção entre o dever estatal de reprimir ilícitos e a preservação das garantias constitucionais de sigilo e privacidade, à luz dos artigos 5º e 6º da Constituição Federal do Brasil e da Lei Complementar nº 105/2001.

1. Introdução

                               Ao adentrar o campo de tensão entre as prerrogativas estatais de investigação e os direitos fundamentais à privacidade e ao sigilo das comunicações, deparamo-nos com um dos dilemas mais intrincados do direito processual penal contemporâneo. A prática das autoridades policiais em solicitar relatórios do COAF sem intermédio judicial provoca questionamentos acerca da integridade do nosso sistema constitucional de proteção aos direitos individuais.

2. Direito à Privacidade e Sigilo Constitucionais

                               O escopo da privacidade e do sigilo bancário, assegurados respectivamente nos incisos X e XII do artigo 5º da Constituição Federal, é um pilar fundamental do Estado de Direito, configurando-se como uma salvaguarda contra a arbitrariedade estatal. A Lei Complementar nº 105/2001, ao regular o sigilo das operações de instituições financeiras, atua como norma especial, reiterando a inviolabilidade do sigilo como regra e a intervenção estatal como exceção, dependente de controle judicial.

                               Também tempos exemplos da garantia de sigilo de informações fiscais no Código Tributário Nacional, sendo farto o entendimento de que a quebra de qualquer espécie de sigilo obrigatório exige, desde sempre, autorização judicial.

                               Isso porque não existe hierarquia absoluta entre princípios constitucionais, de maneira que é necessário sopesar-se, sempre diante do caso concreto, a princípio mais aplicável: o direito ao sigilo e intimidade versus o dever estatal de coibir a criminalidade através da punição de indivíduos em conflito a lei.

3. O Papel Constitucional do COAF

                               Enquanto Unidade de Inteligência Financeira do Brasil, o COAF é dotado de competências que lhe permitem vasculhar operações financeiras à procura de sinais de ilicitude.

                               Porém, a Constituição baliza essa atuação, condicionando a transferência de dados sigilosos às hipóteses legalmente previstas e, principalmente, à supervisão do Poder Judiciário. A obtenção e o tratamento desses dados devem estar circunscritos pelos princípios da legalidade, proporcionalidade e necessidade.

                               O COAF, no Brasil, foi criado sob orientação de Direito Internacional, e visa coibir, principalmente, os crimes de lavagem de dinheiro, a fuga de divisas, o o financiamento e o lucro dos crimes de tráfico de drogas e organização criminosa.

4. Separação de Poderes e a Necessidade de Controle Judicial

                               O princípio da separação dos poderes exige que haja um efetivo controle judicial sobre atos que impactem em direitos fundamentais.

                               A solicitação de dados sigilosos do COAF, por autoridades policiais sem o crivo do Judiciário afronta a garantia de supervisão por um magistrado imparcial, uma das pedras angulares da função judicante.

                               Mais uma vez, o texto de lei nada mais é que eu conjunto de palavras vazias, que só se preenchem de significado uma vez é exposto ao fenômeno.

                               Tal prática desconsidera a essencialidade do devido processo legal e da figura do juiz natural, que zela pela correta aplicação da lei ao caso concreto. Somente o juiz pode decidir se, naquela situação específica, deve ser suspendo o sigilo de um réu.

5. Jurisprudência e Doutrina

                               A interpretação jurisprudencial do direito ao sigilo e à privacidade ganha relevância na delimitação dos poderes de investigação do Estado.

                               Uma decisão notável da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) exemplifica a aplicação desse entendimento, estabelecendo um importante precedente para a proteção de garantias fundamentais frente à atuação policial.

                               No Recurso em Habeas Corpus (RHC) 147.707, a Sexta Turma do STJ julgou procedente o recurso interposto pela defesa da empresária Helga Irmengard Jutta Seibel, proprietária da Cerpasa, para declarar a ilicitude de relatórios de inteligência financeira do COAF, que foram requisitados diretamente pela autoridade policial sem a intermediação do Poder Judiciário. Esta decisão alinhou-se com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), consolidando o entendimento de que a autoridade policial carece de competência para tal ato sem o devido processo legal.

                               O relator do caso, Ministro Antonio Saldanha Palheiro, destacou que a autoridade policial não pode solicitar diretamente ao COAF tais relatórios, e que a iniciativa de compartilhamento deve partir dos próprios órgãos fiscalizadores, no exercício de suas funções administrativas e ao identificar indícios de atividade ilícita.

                               A decisão da Sexta Turma do STJ reafirma a doutrina que coloca a proteção da privacidade e do sigilo bancário como fundamentos inalienáveis do Estado Democrático de Direito. Essa proteção é reflexo da consciência social sobre a importância do respeito às liberdades individuais, e da necessidade de uma vigilância constante para que os avanços tecnológicos e os imperativos de segurança não subvertam esses direitos.

6. Conclusão

                               Frente aos argumentos expostos, conclui-se que a prática de requisição de relatórios de inteligência financeira do COAF por autoridades policiais sem a imprescindível autorização judicial constitui uma afronta às normas constitucionais.

                               Tal atitude subverte o devido processo legal e compromete as liberdades individuais. Assim, imperativo se faz o respeito às garantias constitucionais que norteiam o sistema penal brasileiro, como forma de preservação da democracia e do Estado de Direito.

7. Controvérsia Jurisprudencial

                               Contra entendimento do STJ, levantou-se o Ministério Público através de Reclamação Constitucional, julgada monocraticamente pelo Excelentíssimo Senhor Ministro do Supremo Tribunal Federal Cristiano Zanin.

                               Nos filiamos, contudo, ao entendimento esposado anteriormente pelo Superior Tribunal de Justiça de maneira que, no dia 02/04/2024 iremos proferir Sustentação Oral na sessão de julgamento dos Agravos Regimentais interpostos, no papel de amicus-curiae.

                               Com efeito, esperamos ser possível readequar o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, com decisão de efeito erga omnes capaz de encerrar a discussão a respeito.

                               O julgamento, que ocorre no segundo dia de abril, será transmito no youtube e na TV justiça.

Tráfico privilegiado

O tráfico privilegiado está previsto no artigo 33, § 4º, da Lei 11.343/06 e, trata-se, na realidade, de uma causa de diminuição de pena. Em outras palavras, quando o agente pratica o crime de tráfico de drogas, ele pode ter sua pena reduzida de um sexto a dois terços, se preenchidas algumas condições.

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Delação premiada é prova?

Delação premiada é prova?

A delação premiada pode ser entendida como um mecanismo judicial ou benefício legal concedido pelo juiz, a pedido da defesa ou do Ministério Público, por meio do qual aquele indivíduo que está sendo investigado ou acusado pela prática de determinado crime, colabora com as investigações, revelando detalhes da empreitada criminosa.

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Prisão e cumprimento de pena antes do trânsito em julgado

Prisão e cumprimento de pena antes do trânsito em julgado

É de se pensar que a fase de execução somente se iniciaria quando do caráter definitivo da pena ou da medida de segurança imposta. Em outras palavras, após o trânsito em julgado de sentença condenatória. Afinal, assim dispõe o inciso LVII do art. 5° da CF: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Nesse sentido, em 07/11/2019, foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal, no julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 43, 44 e 54. Firmou-se a orientação de que a prisão, para fins de cumprimento de pena, somente é permitida após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Ou seja, em regra, a expedição da guia de execução para dar início ao cumprimento da pena, somente é possível no momento em que uma decisão - sentença ou acordão - torna-se definitiva, não podendo mais ser objeto de recurso.

Entretanto, há uma ressalva! Na mesma ocasião do julgamento citado, o STF ressaltou a possibilidade da prisão antes do trânsito em julgado da sentença, quando presentes os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal. Em outras palavras, a prisão pode ser mantida ou decretada para “garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”. Nesse caso, os Tribunais pátrios vêm admitindo a possibilidade de expedição da guia de execução provisória, ainda na sentença proferida pelo juiz de primeiro grau.

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Como acelerar meu processo na justiça? 5 iniciativas ao seu alcance

Como acelerar meu processo na justiça? 5 iniciativas ao seu alcance

Em geral, a maior ou menor duração do processo está relacionada ao acúmulo de “pequenas” e espaçadas demoras ao longo do procedimento. E é sobre essas demoras que se espalham ao longo do processo que as partes têm algum controle. Além disso, é possível que decisões tomadas fora da demanda, mas relacionadas a ela, sejam decisivas para a duração do processo.

Indicamos 5 posturas para se adotar dentro e fora do processo, a fim de que ele seja o mais ligeiro possível.

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Quem perdeu o “foro privilegiado”

As novas regras do foro por prerrogativa de função

O Foro Especial por Prerrogativa de Função é uma norma jurídica que emana diretamente da Constituição Federal de 1988.

Em explicação simplificada, o “Foro Privilegiado” é uma expressão comumente utilizada para dar nome a um conjunto de regras constitucionais e infra constitucionais (entendendo aqui, informalmente, as Constituições Estaduais como normas infra constitucionais) que determinam a competência para julgamento de ações judiciais (principalmente as de natureza penal) instauradas contra determinados indivíduos, em virtude de cargos que ocupam perante a administração pública.

Ao contrário do que pode parecer (e do que acredita a maior parte da população brasileira), o Foro Especial por Prerrogativa de Função, ou Foro Privilegiado, não busca proteger ou beneficiar agentes públicos. Trata-se, em verdade, de uma tentativa de garantir a aplicação da justiça.

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A ideia por trás da regra é muito simples, e se inspira diretamente na obra de Montesquieu, sem dúvida alguma o pensador mais fundamental na fundamentação das democracias contemporâneas: “Só o poder regula o poder”.

O que se busca é evitar que um indivíduo investido em uma grande quantidade de poder público seja julgado por um indivíduo incapaz de envergar poder à altura. Em outras palavras, a ideia é evitar que um indivíduo extremamente poderoso, como por exemplo um senador da república, seja julgado por outro indivíduo muito mais frágil do que ele, muito menos poderoso, como é o caso de um juiz de primeira instância.

O poder e a influência exercidos por um senador da república são tão grandes que, certamente, seriam capazes de influenciar (ou mesmo amedrontar) um juiz comum, de maneira que justamente para garantir a imparcialidade e a proteção do julgador, estipulou-se que os detentores de grande poder público seriam julgados por juízes de poder similar.

Um juiz do Supremo Tribunal Federal carrega quantidade de poder igual ou maior da que carrega um senador, de maneira que seria muito mais difícil influenciá-lo, ou mesmo intimidá-lo, no exercício de seu ofício.

Ademais, as decisões e julgamentos em processos de indivíduos com grande influência, muitas vezes tem consequências políticas capazes de gerar grande impacto na sociedade brasileira, sendo salutar que tais decisões sejam tomadas pelos membros do judiciário considerados mais capazes e preparados para assumir tamanha responsabilidade.

Contudo, em interpretação talvez influenciada pela opinião pública, o Supremo Tribunal Federal entendeu por bem restringir e diminuir a aplicação das regras de Foro Privilegiado, e os juízes ordinários passaram a ser considerados competentes e legitimados para julgar ações que, até pouco tempo atrás, seriam julgadas, desde o início, por tribunais superiores.

Uma grande modificação foi a determinação de que crimes cometidos por autoridades administrativas antes de assumirem seus cargos não mais serão julgados de acordo com a regra de competência especial por prerrogativa de função.

Isso quer dizer que um indivíduo acusado de haver cometido crime antes de ser eleito para qualquer cargo político, ou mesmo que tenha cometido crimes ao longo do exercício de um cargo público passado,  será julgado pelo juiz de primeira instância, e não pelos julgadores selecionados para julgar ações penais contra indivíduos que ostentam o cargo para o qual foi recentemente eleito.

Por exemplo: em tese, um prefeito do Estado de Minas Gerais acusado de haver cometido um crime, de acordo com a interpretação antiga do direito, seria julgado diretamente pelos desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais.

Mas, com a nova interpretação (que, diga-se de passagem, consideramos inconstitucional) esse mesmo prefeito, ainda que em exercício de suas atividades, se for acusado de haver cometido um crime antes de sagrar-se prefeito, será julgado pelo juiz de primeira instância da comarca em que for denunciado.    

Um senador da república, acusado de haver cometido crimes antes de tornar-se senador, será julgado por um juiz de primeira instância, independente de estar, no momento do processamento daquele crime, exercendo poderes de senador.

Na prática, diversas autoridades públicas (prefeitos, deputados, senadores, ministros e etc) deixarão de ser julgados por tribunais superiores, e passarão a ser julgados por seus crimes passados por meros juízes de primeira instância.

Há quem diga que a mudança de entendimento é benéfica, por acreditar que existirão mais julgamentos e condenações de agentes políticos.

Contudo, somos de opinião diametralmente contrária. Acreditamos que indivíduos extremamente poderosos passarão a ser julgados por juízes muito mais influenciáveis, e com menor capacidade de fazer frente ao poder exercido pelos réus que passarão a julgar.

Ademais, um processo que tramita perante uma vara criminal de primeira instância recebe bem menos publicidade do que aqueles que tramitam perante os tribunais superiores, o que dificulta em sobremaneira a fiscalização, por parte da sociedade, do exercício jurisdicional.

Basta imaginar que inúmeros prefeitos, deputados, senadores e ministros, oriundos de cidades pequenas, do interior dos estados brasileiros, serão julgados por juízes desconhecidos, que atuam e vivem justamente nas mesmas cidades em que aqueles agentes públicos exercem enorme influência, juízes esses que circulam invariavelmente nos mesmos círculos sociais que circulam aquelas autoridades locais.

Agentes políticos, em especial prefeitos, deputados e senadores via de regra exercem muito mais influência e poder em suas regiões do que os juízes daquela comarca, e são capazes de dificultar, ou até mesmo impossibilitar, a tramitação de processos perante o poder judiciário local.

Quem perdeu o foro privilegiado, ou foro especial por prerrogativa de função

Na realidade, nenhuma autoridade perdeu, de fato, o Foro Privilegiado. Não houve mudança constitucional, de maneira que todas aquelas autoridades políticas detentoras de Foro Especial por Prerrogativa de Função continuam abarcados pela norma.

O que mudou com o novo entendimento do Supremo Tribunal Federal foi simplesmente a competência para julgamento de ações penais relativas a crimes supostamente cometido por agentes públicos quando ainda não exerciam seus cargos políticos, ou cometidos no exercício de cargos políticos passados.

Por exemplo: um prefeito que comete crime ao longo de seu mandato vigente, continua possuindo foro especial, e será julgado diretamente pelo Tribunal de Justiça de seu Estado. Mas um prefeito acusado de haver cometido crimes antes de tornar-se prefeito será julgado pelo juiz de primeira instância.

Apesar de ainda haver alguma discussão, o entendimento majoritário dos tribunais brasileiros, em especial do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, se orienta no sentido de que um agente político, ainda que atualmente envergue cargo com foro privilegiado, mas que tenha cometido crimes no exercício de um outro cargo passado, perde seu “direito” ao foro especial, e será julgado pelo juiz de primeira instância.

Por exemplo: um deputado estadual comete crimes durante o seu mandato, no qual detém prerrogativa de foro. Findado aquele mandato, o mesmo deputado se elege prefeito, cargo que também enverga necessidade de foro especial, ou mesmo se reelege para nova legislatura como deputado estadual.

Este deputado, ainda que reeleito, ou eleito para outro cargo “beneficiado” pelo foro privilegiado, será julgado pelo juiz de primeira instância, e não pelo Tribunal de Justiça do estado.

Em outras palavras, a regra do foro privilegiado só valerá para os crimes cometidos durante o exercício daquele mandato específico, e não para crimes passados, ainda que cometidos em uma época na qual aquele mesmo indivíduo, por força de exercer outro cargo qualquer, já possuía prerrogativa de foro em virtude de função.